Hoje vamos tratar de um caso prático de registro de imóveis que envolve dois institutos de alta relevância para o fluxo negocial: retificação de área e georreferenciamento.
A Problemática:
Se na disciplina de direitos reais há o brocado jurídico que expressa "o condomínio é o inferno do direito"; eu, ousaria dizer que para os imóveis rurais "havendo cercas entre imóveis rurais, a tendência é que seu lindeiro seja ou se torne seu desafeto".
Para quem não vive tal realidade, explico: são os fatos da vida rural que acabam criando as situações em que se rompem as cercas pelo gado que invade, o tempo que derruba, pelo vizinho que quer aumentar clandestinamente sua área, etc.
Disso, se extrai que essa conturbada relação de fato se potencializa com a característica de que os imóveis rurais por sua natural extensão e serem objeto de negócios acabam por demandar constantes medições, seja pela venda ou compra parcial, seja para a constituição de garantias bancárias.
Assim, a potencialidade de confusão entre lindeiros é uma constante.
Só que para que haja fluxo negocial é mandatório que haja certeza (segurança jurídica) na titularidade do domínio. E isso exige que os imóveis estejam perfeitamente descritos e nos termos da lei.
E a grande particularidade é que para que se obtenha tal regularidade - especialmente o respeito à especialidade objetiva, é necessário, pelo menos inicialmente, a colaboração mínima do lindeiro para que se especialize a área corretamente. Além disso, é sabido que em praticamente nenhum imóvel rural é possível a alienação sem que esteja georreferenciado.
Então, para iniciar, passemos aos conceitos de Retificação de Área e Georreferenciamento.
Conceitos de Retificação de Área e Georreferenciamento:
Inicialmente, toda e qualquer retificação é o procedimento pelo qual se proporciona a regularidade dos fatos, pessoas e direitos relativos ao imóvel na matrícula. Dessa forma, a retificação de área é o procedimento previsto na legislação que se refere à especialidade objetiva. E como sabemos, a especialidade objetiva é o princípio do registro de imóveis que se relaciona com a perfeição da descrição imobiliária. Está basicamente previsto no artigo 213 da Lei 6.015.
Já o georreferenciamento é um outro procedimento em que o proprietário cadastrará junto ao INCRA e ao SIGEF as coordenadas do imóvel de acordo com o posicionamento geodésico (verificado por GPS) e após a certificação cadastral junto ao referido órgão se poderá (deverá em muitos casos) averbar na matrícula tais coordenadas e também obter a especialização objetiva perfeita do imóvel.
E nessa toada, aos que nos acompanham a mais tempo, é possível perceber que existe uma certa similaridade nessa temática de retificação de área e georreferenciamento com a de matrícula x cadastro já tratado extensamente por nós (https://www.novosetimo.com.br/post/matr%C3%ADcula-cadastro-transcri%C3%A7%C3%A3o)
Isso porque, basicamente, a matrícula trata de direitos e os cadastros de área. Mas existe uma tendência de aproximação e espelhamento para que tudo fique nos conformes.
Porém, há uma confusão comum na leitura dos artigos 176, II e o 213 da LRP que geram uma falsa esperança entre os proprietários de imóveis rurais em dispensar a participação dos lindeiros nos georreferenciamentos.
Vejamos o que emana a Lei:
Art. 213. O oficial retificará o registro ou a averbação:
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II - a requerimento do interessado, no caso de inserção ou alteração de medida perimetral de que resulte, ou não, alteração de área, instruído com planta e memorial descritivo assinado por profissional legalmente habilitado, com prova de anotação de responsabilidade técnica no competente Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura - CREA, bem assim pelos confrontantes.
...
§ 2o Se a planta não contiver a assinatura de algum confrontante, este será notificado pelo Oficial de Registro de Imóveis competente, a requerimento do interessado, para se manifestar em quinze dias, promovendo-se a notificação pessoalmente ou pelo correio, com aviso de recebimento, ou, ainda, por solicitação do Oficial de Registro de Imóveis, pelo Oficial de Registro de Títulos e Documentos da comarca da situação do imóvel ou do domicílio de quem deva recebê-la.
§ 3o A notificação será dirigida ao endereço do confrontante constante do Registro de Imóveis, podendo ser dirigida ao próprio imóvel contíguo ou àquele fornecido pelo requerente; não sendo encontrado o confrontante ou estando em lugar incerto e não sabido, tal fato será certificado pelo oficial encarregado da diligência, promovendo-se a notificação do confrontante mediante edital, com o mesmo prazo fixado no § 2o, publicado por duas vezes em jornal local de grande circulação.
§ 4o Presumir-se-á a anuência do confrontante que deixar de apresentar impugnação no prazo da notificação.
§ 5o Findo o prazo sem impugnação, o oficial averbará a retificação requerida; se houver impugnação fundamentada por parte de algum confrontante, o oficial intimará o requerente e o profissional que houver assinado a planta e o memorial a fim de que, no prazo de cinco dias, se manifestem sobre a impugnação.
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§ 10. Entendem-se como confrontantes os proprietários e titulares de outros direitos reais e aquisitivos sobre os imóveis contíguos, observado o seguinte:
I - o condomínio geral, de que trata o Capítulo VI do Título III do Livro III da Parte Especial da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), será representado por qualquer um dos condôminos;
III - não se incluem como confrontantes:
a) os detentores de direitos reais de garantia hipotecária ou pignoratícia; ou
b) os titulares de crédito vincendo, cuja propriedade imobiliária esteja vinculada, temporariamente, à operação de crédito financeiro.
§ 11. Independe de retificação:
...
II - a adequação da descrição de imóvel rural às exigências dos arts. 176, §§ 3o e 4o, e 225, § 3o, desta Lei.
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§ 16. Na retificação de que trata o inciso II do caput, serão considerados confrontantes somente os confinantes de divisas que forem alcançadas pela inserção ou alteração de medidas perimetrais.
§ 17 Se, realizadas buscas, não for possível identificar os titulares do domínio dos imóveis confrontantes do imóvel retificando, definidos no § 10, deverá ser colhida a anuência de eventual ocupante, devendo os interessados não identificados ser notificados por meio de edital eletrônico, publicado 1 (uma) vez na internet, para se manifestarem no prazo de 15 (quinze) dias úteis, com as implicações previstas no § 4º deste artigo.
Art. 176 - O Livro nº 2 - Registro Geral - será destinado, à matrícula dos imóveis e ao registro ou averbação dos atos relacionados no art. 167 e não atribuídos ao Livro nº 3.
...
§ 3o Nos casos de desmembramento, parcelamento ou remembramento de imóveis rurais, a identificação prevista na alínea a do item 3 do inciso II do § 1o será obtida a partir de memorial descritivo, assinado por profissional habilitado e com a devida Anotação de Responsabilidade Técnica – ART, contendo as coordenadas dos vértices definidores dos limites dos imóveis rurais, geo-referenciadas ao Sistema Geodésico Brasileiro e com precisão posicional a ser fixada pelo INCRA, garantida a isenção de custos financeiros aos proprietários de imóveis rurais cuja somatória da área não exceda a quatro módulos fiscais.
§ 4o A identificação de que trata o § 3o tornar-se-á obrigatória para efetivação de registro, em qualquer situação de transferência de imóvel rural, nos prazos fixados por ato do Poder Executivo.
...
§ 13. Para a identificação de que tratam os §§ 3º e 4º deste artigo, é dispensada a anuência dos confrontantes, bastando para tanto a declaração do requerente de que respeitou os limites e as confrontações.
E a pergunta que se faz é:
Preciso da anuência dos confrontantes nos casos de parcelamento, desmembramento ou remembramento de imóveis rurais? E a disposição do art. 176, §13o?
Art. 176, § 13. Para a identificação de que tratam os §§ 3º e 4º deste artigo, é dispensada a anuência dos confrontantes, bastando para tanto a declaração do requerente de que respeitou os limites e as confrontações.
Art. 213, § 11. Independe de retificação: II - a adequação da descrição de imóvel rural às exigências dos arts. 176, §§ 3o e 4o, e 225, § 3o, desta Lei.
Para ser bastante objetivo:
DEPENDE!
Se o imóvel já estiver perfeitamente descrito, pendente apenas o georreferenciamento, não há necessidade.
Se houver alguma irregularidade na especialidade objetiva (99% dos casos dos imóveis rurais do país), será necessária a anuência dos confrontantes.
Isso porque o imóvel já terá passado antes pela notificação do lindeiro e esse concordará ou não terá impugnado justificadamente o procedimento de retificação de área e, por isso, não há mais risco de se invadir propriedade alheia.
Esse é o caso em que o engenheiro pode certificar que a sua medição não ultrapassou o que já estava detalhado no memorial descritivo. Isso só ocorre porque a sua própria habilitação no CREA estará em risco caso haja uma fraude (não vou citar a norma aqui, pesquise que você encontrará facilmente) e o maior interessado já se manifestara.
Dessa confusão toda até foi expedida uma recomendação do CNJ.
Recomendação Nº 41 do CNJ:
Art. 1º RECOMENDAR aos registradores de imóveis que, nas retificações previstas no art. 213 da Lei 6.015/73, provenientes de georreferenciamento de que trata a Lei Federal n. 10.267/2001, dispensem a anuência dos confrontantes nos casos de desmembramento, parcelamento ou remembramento de imóveis rurais, bastando para tanto a declaração do requerente de que respeitou os limites e as confrontações, nos termos no art. 176, §§ 3º e 4º, c/c o § 13 da Lei 6.015/73, alterada pela Lei n. 13.838, de 4 de junho de 2019.
A leitura da recomendação deve ser feita de forma a, por exclusão, exigir a anuência dos confrontantes em todos os casos que não sejam os da recomendação. E, lembrando que para desmembrar, parcelar ou remembrar imóvel, eu só posso se já tiver minha área retificada. Havendo necessidade de retificação, obrigatória a anuência.
E agora, como fica minha situação com um lindeiro que não quer assinar?
Sem problemas. Qual o motivo dele não querer assinar? Inimizade? Medo de ser enganado no curso de um procedimento e perder área? Ignorância?
Não importa, se a notificação não for impugnada = sucesso do procedimento de georreferenciamento com notificação não respondida.
Art. 213, § 4o Presumir-se-á a anuência do confrontante que deixar de apresentar impugnação no prazo da notificação.
E se minha notificação for impugnada?
Se for impugnada sem justa causa, exemplo, declarar apenas que a área está invadindo sem que haja uma prova minimamente bem realizada = sucesso do procedimento de georreferenciamento com notificação impugnada injustamente.
Art. 213, § 5o Findo o prazo sem impugnação, o oficial averbará a retificação requerida; se houver impugnação fundamentada por parte de algum confrontante, o oficial intimará o requerente e o profissional que houver assinado a planta e o memorial a fim de que, no prazo de cinco dias, se manifestem sobre a impugnação.
Lembrando que o procedimento de retificação de área só será infrutífero se realmente houver riscos de perda de propriedade alheia ou aparente fraude.
Dessa forma, não há grandes motivos para que o proprietário tenha medo do procedimento de retificação de área com averbação do georreferenciamento ou qualquer outro que exija a notificação do lindeiro, por mais que essa relação tenha uma tendência a não ser das melhores.
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