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Foto do escritorMarcello Antunes

Posse e Usucapião

Um dos temas mais complexos do Direito, sem dúvidas, é a posse. E quando tratamos de usucapião extrajudicial, por óbvio, se falará muito a respeito dessa "anomalia jurídica".


Ontem, na 5a edição do curso intensivo do NOVO, tivemos um saudável debate a respeito da posse e usucapião. Entre os participantes estava o Dr. Lucas, nosso ilustre defensor público da vara de sucessões que, de forma muito gentil, expôs sua correta visão sobre o tema.


[E como eu sempre gosto de deixar claro: a mentoria (como tudo na vida) tem em sua essência uma necessidade pessoal, quase egoísta, que me beneficia mais do que todos, já que quem mais aprende, é instigado e beneficiado pelos momentos em grupo, sou eu, o tabelião que vos redige. E como gosto desses embates. Aprendendo muito, muito mesmo.]


A contenda foi sobre a partir de que momento após o esbulho a posse injusta decorrente da violência se tornaria ad usucapionem.


Eu aventei a tese de que enquanto o crime de esbulho ainda não estivesse prescrito não deveria haver posse ad usucapionem, tendo em vista a ausência de impossibilidade de interversão do caráter da posse. Isso baseado no ordenamento como um todo, haja vista que não faria sentido haver função social e aquisição da propriedade por um lado e sobre o mesmo fato haver a punibilidade de quem praticou o esbulho.


Não lembrava muito bem da onde havia tirado isso e hoje tive a revelação do que estava buscando. E foi baseado na posição jurídica da jurista mais especial que pude obter valiosas lições acadêmicas, Maria Helena Diniz. Só que...


Só que a minha posição não é a dela, mas baseado na dela. Enquanto ela possui uma visão 100% civilista, a minha parece se fundamentar no sistema como um todo, utilizando o prazo da prescrição do crime como algo punível socialmente e que não deveria ensejar um benefício para o possuidor e uma dicotomia sistêmica, mesmo que por alguns poucos anos (ou seja: como alguém que poderia ser punido criminalmente estaria executando a função social?).


Vou deixar bem claro o que disse ontem: essa discussão não muda em absolutamente nada a operação da usucapião hoje, tendo em vista que não vejo esse tipo de debate, ao menos na usucapião extrajudicial. E agora, lembrando e refletindo sobre o tema, acredito que isso era uma tese mesmo (e errei levantando esse tema para a mentoria).


O cerne da tese é o seguinte: a posse só passa a existir a partir do momento que os vícios deixam de maculá-la. Pois a posse degradada em nosso sistema se configura como detenção.


Vou deixar um link para estudos dos interessados que resolveu questões práticas e ilustrou bem a discussão (que não é simples).



A interversio possessionis depende da cessação dos atos de violência e clandestinidade praticados para o apoderamento da coisa. A discussão, porém, gira em torno do momento em que ocorrerá a conversão após cessar a violência ou clandestinidade. Nesse ínterim, surgem quatro pontos de vista na literatura jurídica que merecem ser destacados:
Para a primeira corrente, tão logo cessem os atos de violência e clandestinidade, a posse injusta se transmuda em justa. A partir daí, tem-se posse ad usucapionem. Segundo João Manoel de Carvalho Santos,8 principal representante dessa tese, a partir daquela cessação haverá posse útil.
A segunda tese entende que enquanto durarem os atos de violência e clandestinidade, não existe posse, mas mera detenção (ou tença). Após a cessação, surge a posse injusta, que na acepção dessa tese é posse ad usucapionem e o estigma de injusta se deve ao modo como foi adquirida, tratando-se de uma questão conceitual para distingui-la da posse justa do art. 1.200 do Código Civil. Nesse sentido, aduzem Moreira Alves,9 Pontes de Miranda10 e Eduardo Espínola.11
Essa linha também é seguida por alguns autores contemporâneos, como Carlos Roberto Gonçalves,12 Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald,13 e Francisco Eduardo Loureiro.
Francisco Eduardo Loureiro, por exemplo, vê a posse injusta como um estigma, porém é posse (inclusive, ad usucapionem). Enquanto persiste a violência e a clandestinidade, há mera detenção; cessados tais atos, surge a posse, mas que dada a sua origem, deve ser tida por injusta:14
Via de consequência, nos exatos termos da segunda parte deste artigo, enquanto perduram a violência e a clandestinidade, não há posse, mas simples detenção. No momento em que cessam os mencionados ilícitos, nasce a posse, mas injusta, porque contaminada de moléstia congênita. Dizendo de outro modo, a posse injusta, violenta ou clandestina, tem vícios ligados à sua causa ilícita. São vícios pretéritos, mas que maculam a posse mantendo o estigma da origem. Isso porque, como acima dito, enquanto persistirem os atos violentos e clandestinos, nem posse haverá, mas mera detenção”.
Para a terceira corrente, representada por Silvio Rodrigues,15 seguido por Maria Helena Diniz, a posse injusta se transmuda em justa um ano e um dia após cessarem os atos de violência e clandestinidade, caso não haja oposição ao esbulho por parte do legítimo possuidor.
Maria Helena Diniz, ao analisar o art. 1.203 do Código Civil, verifica que o dispositivo expressa uma presunção juris tantum. A posse irá guardar o caráter de sua aquisição (viciada ou não, de boa-fé ou não) mesmo se transmitida a terceiros, em razão da regra nemo si ipsi causam possessionis mutare potest (ninguém pode mudar, por si só, a causa de sua posse). Segundo a autora:16
“(...), sendo juris tantum, tal presunção admite prova em contrário. De modo que, se o adquirente a título clandestino ou violento provar que sua clandestinidade ou violência cessaram há mais de ano e dia, sua posse passa a ser reconhecida (CC, art. 1.208), convalescendo-se dos vícios que a maculavam. O mesmo não ocorre com a posse precária, isto porque a precariedade não cessa nunca”.
Ao analisar os requisitos da usucapião, Maria Helena Diniz entende que a posse que induz usucapião há de ser justa:17
“Tal posse há de ser justa, isto é, sem os vícios da violência, clandestinidade ou precariedade, pois se a situação de fato for adquirida por meio de atos violentos ou clandestinos ela não induzirá posse enquanto não cessar a violência ou clandestinidade e, se for adquirida a título precário, tal situação não se convalescerá jamais”.
Sinteticamente, tal ponto de vista parece ser o seguinte: após cessarem os atos de violência e clandestinidade, a posse injusta se convalesce em justa dentro de um ano e um dia; somente se dará usucapião se existir posse justa. Esse raciocínio leva ao seguinte questionamento: então, os prazos legais da usucapião são acrescidos de um ano e um dia? Por exemplo, o prazo da usucapião coletiva é de 5 anos. Então, tal prazo passaria a ser de 6 anos e 1 dia? Não se encontrou resposta a esses questionamentos na literatura e nem nos tribunais.
A quarta tese se fundamenta na teoria da função social da posse. Fala-se que a convalescença ocorre no momento da primeira oportunidade que o legítimo possuidor teve para se opor ao esbulho, porém não agiu, logo após cessarem os atos de violência e clandestinidade. Entende-se, nesse caso, ter havido uma resignação quanto ao esbulho. Logo, tal análise dependeria do caso concreto.18
Nesse contexto, há que se considerar, ainda, a teoria da actio nata, pela qual a pretensão de agir depende do conhecimento da situação. O art. 1.224 do Código Civil adotou a actio nata para fins de perda da posse: “Art. 1.224. Só se considera perdida a posse para quem não presenciou o esbulho, quando, tendo notícia dele, se abstém de retornar a coisa, ou, tentando recuperá-la, é violentamente repelido”.
Observe que a perda da posse, isto é, o esbulho, depende de dois requisitos cumulativos. O primeiro é a ciência do esbulho pelo legítimo possuidor (“... tendo notícia dele...”). Evidentemente, para o possuidor presente ao esbulho a ciência é concomitante ao ato de violência e clandestinidade. Já o segundo requisito é a inoponibilidade ou resignação do legítimo possuidor ante o esbulho (“... se abstém de retornar a coisa, ou, tentando recuperá-la, é violentamente repelido”). Observe que, aqui não se exige a cessação da violência ou clandestinidade.
Contudo, esse dispositivo deve ser interpretado sistematicamente em conjunto com a parte final do art. 1.208, também do Código Civil: “Art. 1.208. Não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância assim como não autorizam a sua aquisição os atos violentos, ou clandestinos, senão depois de cessar a violência ou a clandestinidade”. Por essa formulação normativa, in fine, somente após cessarem os atos de violência e clandestinidade é que o esbulhador terá efetivamente a posse.
Ou seja, a perda da posse ocorre quando o legítimo possuidor toma ciência do esbulho e nada faz para retomar a coisa, após cessarem os atos de violência e clandestinidade (art. 1.224 c/c art. 1.208, in fine).
Pois bem. Sabe-se que o esbulho é a perda da posse – isto é, a impossibilidade de exercer os poderes inerentes ao domínio – de determinada coisa. Sabe-se, ainda, que a usucapião depende do esbulho. Ora, em sendo assim, o dies a quo do prazo usucapiente é o momento da perda da posse pelo legítimo possuidor na forma estabelecida pelos arts. 1.224 e 1.208.
Aí sim, a partir desse momento, ocorre a interversio possessionis, transmudando a posse injusta (tença) em posse justa, ad usucapionem.
Pode parecer, à primeira vista, que o requisito da ciência do esbulho pelo legítimo possuidor seja anacrônico, afinal, imagine, por exemplo, o proprietário que cerca um terreno e se muda para outro país, onde mora por 20 anos sem retornar ao Brasil. Nesse período, o imóvel é ocupado por 15 anos. Não iria se dar a usucapião?
O requisito da ciência deve ser analisado, aí sim, a partir da função social da posse. O desconhecimento do esbulho não pode decorrer de desinteresse, desleixo e descuidado da parte do legítimo possuidor. Essa “ciência” deve ser entendida como possibilidade de vir a ter conhecimento. A diligência que se espera de um proprietário é o cuidado para com sua coisa, o interesse pelo que ocorre nele. (Até porque, se o imóvel estiver sendo utilizado indevidamente, poderá lesar a função social da propriedade prevista no § 1º do art. 1.228 do Código Civil).

Pensemos no caso da usucapião constitucional urbana: prazo 5 anos. A prescrição para o crime de esbulho parece ser de 3 anos.


Código Penal (eca!), Art. 161 - Suprimir ou deslocar tapume, marco, ou qualquer outro sinal indicativo de linha divisória, para apropriar-se, no todo ou em parte, de coisa imóvel alheia:

Pena - detenção, de um a seis meses, e multa.

Esbulho possessório

II - invade, com violência a pessoa ou grave ameaça, ou mediante concurso de mais de duas pessoas, terreno ou edifício alheio, para o fim de esbulho possessório.

§ 2º - Se o agente usa de violência, incorre também na pena a esta cominada.

§ 3º - Se a propriedade é particular, e não há emprego de violência, somente se procede mediante queixa.


Art. 109. A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, salvo o disposto no § 1o do art. 110 deste Código, regula-se pelo máximo da pena privativa de liberdade cominada ao crime, verificando-se:

VI - em 3 (três) anos, se o máximo da pena é inferior a 1 (um) ano.



Bom, voltando à posição doutrinária e a teoria da Maria Helena Diniz o prazo sempre correria a usucapião após cessar em um ano e dia da posse. E os prazos de usucapião segundo essa "minha ideação", nesse caso, somente em 3 anos.


As correntes se fundamentam na impossibilidade de haver posse quando há um motivo degradante, como a violência ou clandestinidade e não ocorrido a transmutação da posse. Por isso, impedida a posse ad usucapionem.


Não vou me estender mais sobre o assunto para o momento, mas fica aqui registrada a nossa discussão produtiva e que daria uma bela tese de doutoramento.



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