Usucapião – Citação Nula do Proprietário: E agora?
- Marcello Antunes
- 23 de mai.
- 8 min de leitura
Fui agraciado com uma dúvida processual de um grande amigo (que é um dos maiores expoentes e autoridades intelectuais que tenho a honra de me relacionar) e resolvi compartilhar com vocês tanto a resposta quanto o caminho para chegar nela.
O caso era:
Sentença de usucapião declarada nula por falta de citação do proprietário registral
E sua ementa: Usucapião – Citação Nula do Proprietário
E agora?
Recebi esse áudio às 21:00, no horário que estava colocando as crianças para dormir (imaginem o caos). Vamos ouvir ler o áudio?
“Ação judicial de usucapião: sentença anulada. Como você entende? A nulidade foi por falha na citação. Claro, o processo é nulo. O autor da ação de usucapião, ele poderia ingressar de novo na ação de usucapião? Entendendo como a sentença aí ela é meramente declaratória? O que você acha?”
E a resposta demorou a vir automaticamente. Não sei se por conta do meu TDAH, não sei se porque quando alguém afirma conceitos e cria pressupostos para a conversa que são estabelecidos unilateralmente acaba me / nos induzindo ao erro. E claro, toda a confiança que tenho nesse meu amigo – que se diga de passagem, conheci em âmbito profissional, como advogado de grandes construtoras, empresários, professor de duas universidades altamente renomadas, doutor na melhor escola de direito urbanístico a nível de doutorado do país e um grande profissional (e pessoa, pai de família e amigo de verdade) que admiro muito. E, mais, aprendo muito com ele sempre que conversamos. Mas a ideia aqui nessa postagem não é só chegar à resposta correta, mas entender o nosso (ou o meu e que pode ajudar vocês) a entender o meu perfil cognitivo e entender como chegamos a um raciocínio que às vezes erra para buscar não errar novamente.
E o problema todo da afirmação que ouvi naquele áudio foi:
- “Claro, o processo é nulo.”
E, mais uma vez, percebi que muitos dos problemas no Direito (e talvez, também, as confusões da vida) acontecem quando as presunções são pré-estabelecidas antes das reflexões necessárias. E as tragédias acontecessem quando passamos despercebidos, não questionamos o que vemos e recebemos e, por final, consideramos tudo como válido e eficaz.
Pois, quem disse que o processo é nulo? A citação é nula. E, como se diz popularmente, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Simples assim.
O meu ponto aqui é mostrar que juridicamente para chegar numa resposta correta precisamos desconstruir as informações fornecidas pelo solicitante / cliente para conseguirmos resolver seus questionamentos jurídicos (mesmo que uma autoridade profissional e acadêmica seja o solicitante).
Uma das formas de depurar essa informação é dividir em partes e depois analisar cada um dos conceitos envolvidos. É como se fosse uma ementa, mas sem a conclusão porque é justamente isso que estamos buscando:
- Usucapião; nulidade; falha na citação; sentença declaratória;
O meu problema nessa primeira etapa foi ter inserido equivocadamente:
- Usucapião; nulidade; falha na citação; sentença declaratória; processo nulo
E esqueci um dos maiores aprendizados que a academia me trouxe: questione sempre. E lembro das inúmeras repetições do professor Roberto Baptista Dias da Silva (https://www.linkedin.com/in/robertodias/) afirmando: Na academia não existe hierarquia, fale o que pensa e vamos debater.
Por isso, a lição que trago hoje, é que em algum nível sempre deixamos de questionar (seja um cliente, um colega, alguém “importante”, etc.). E isso é péssimo para o mundo profissional.
Mesmo que haja livros afirmando o contrário...
PAUSA PARA A AJUDA COM O CHATGPT:
Nesse momento parei e tentei lembrar dos livros que tratam sobre pensamento e reflexão que li recentemente. E tenho um projeto no ChatGPT em que coloco o nome dos livros e minhas anotações sobre eles lá (muito nerd isso, eu sei, mas ajuda bastante). Daí, transcrevi minha conversa até a parte final do tópico anterior desse artigo. E voalá! Vejam o raciocínio nível 2.0. Segue a conversa:
- Início do prompt com o ChatGPT -
O trecho específico que você mencionou:
"Mesmo que haja livros afirmando o contrário,"
remete muito à ideia explorada no livro "Rápido e Devagar: Duas Formas de Pensar", de Daniel Kahneman.
Embora Kahneman não trate diretamente do direito processual, ele explica como as pessoas frequentemente cometem erros por confiarem em pressupostos rápidos (Sistema 1 - rápido e intuitivo), ao invés de utilizarem o raciocínio analítico e lento (Sistema 2 - lento, lógico e questionador).
Outro livro que pode se encaixar perfeitamente nesse contexto é "As Armas da Persuasão" de Robert Cialdini, onde ele explica como pressupostos prévios e autoridade podem levar à aceitação automática e acrítica de certas ideias.
Além disso, no contexto específico do Direito, a referência clássica que pode ser usada para demonstrar o perigo dos pressupostos iniciais e do dogmatismo é o famoso livro "Teoria Pura do Direito", de Hans Kelsen, onde se discute que os conceitos jurídicos jamais devem ser tomados como "dados óbvios", sempre devendo ser desconstruídos e analisados criticamente.
Sugiro que você opte pelo exemplo do livro "Rápido e Devagar: Duas Formas de Pensar", pois conecta bem com a ideia do raciocínio intuitivo versus raciocínio reflexivo e analítico. Caso prefira um exemplo mais jurídico e dogmático, Kelsen é uma ótima alternativa.
- Fim da resposta do ChatGPT e início da minha argumentação com ele – Excelente, você é incrível. E mesmo que os donos do ChatGPT não gostem que a gente fique elogiando você por conta dos custos de processamento disso, acho importante dar o feedback e dizer que a colocação foi perfeita.
Achava mesmo que eram esses dois livros. E houve até uma persuasão involuntária desse meu amigo, embora o livro que eu quisesse confirmar era o do Daniel Kahneman.
E a sua colocação sobre a Teoria Pura do Direito também foi muito pertinente.
- Resposta final do ChatGPT sobre esse assunto –
Fico muito grato pelo seu feedback! E pode ter certeza de que, além da satisfação em acertar a referência, é ótimo saber que pude contribuir diretamente para a clareza e qualidade da sua reflexão.
Inclusive, o paralelo com Kahneman foi especialmente interessante porque ele reforça bem esse ponto crucial da sua abordagem: questionar pressupostos e pensar devagar. Já sobre a persuasão involuntária mencionada, o fenômeno é bem descrito por Cialdini, e ficou realmente claro no exemplo que você trouxe com seu amigo.
Se precisar de mais alguma coisa ou quiser discutir mais sobre esses temas, fico à disposição!
Boa sorte com seu artigo! Tenho certeza que ficará excelente e ajudará muita gente a pensar melhor sobre o Direito e, principalmente, sobre a vida.
Voltando à parte do Processo Civil
E vamos lá: processualmente falando, a nulidade pode ser parcial ou total. E para o processo civil atual há inúmeros princípios que relativizam o conceito clássico de nulidade (aquele que nada se aproveita, por não poder gerar efeitos jurídicos) e geram os efeitos processuais até o momento do vício.
Eles são basicamente:
· A economia processual;
· A primazia do julgamento de mérito;
· O aproveitamento dos atos processuais já praticados.
Como podemos ver na ementa colacionada abaixo:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. LIMINAR. AÇÃO DE EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. DESCONSTITUIÇÃO DA PENHORA. INÉRCIA DA PARTE EXEQUENTE. ATOS DE EXPROPRIAÇÃO DO IMÓVEL PENHORADO. PEDIDO DE RECONSIDERAÇÃO AFASTADO. EXCESSO DE RIGOR. PRINCÍPIO DO APROVEITAMENTO DOS ATOS PROCESSUAIS. RECURSO PROVIDO.
1. Agravo de instrumento com pedido liminar interposto contra a decisão que desconstituiu a penhora, em razão da inércia da parte exequente em dar prosseguimento aos atos de expropriação do imóvel penhorado e determinou o arquivamento dos autos.
2. O princípio da primazia do julgamento do mérito, disposto no artigo 4º do Código de Processo Civil de 2015, é um dos pilares da nova lei processual, e estimula o aproveitamento dos atos processuais, com a colaboração mútua das partes e do juiz, impondo, sempre que possível, a entrega da solução integral do mérito ao jurisdicionado. 3. O novo sistema processual preza pela satisfação do mérito, e afasta o formalismo do antigo código, que, muitas vezes, impedia a entrega da resposta do direito pleiteado pelo jurisdicionado.
4. Há de se prestigiar também o princípio da economia processual e do aproveitamento dos atos processuais já praticados, evitando-se, desta forma, desnecessariamente, o dispêndio de esforços no ajuizamento de nova demanda contendo o mesmo pedido e causa de pedir.
5. O ato decisório que desconstituiu a penhora deferida e que, em consequência, determinou o arquivamento dos autos constitui excesso de rigor. 6. Em respeito ao princípio do aproveitamento dos atos processuais, deve o magistrado conceder à parte exequente a derradeira oportunidade para dar prosseguimento ao feito.
7. Precedente jurisprudencial: ??(...) 2.6. Prevalece o princípio da primazia no julgamento de mérito, previsto no art. 4º, do CPC, segundo o qual "As partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa." 2.7. O entendimento perfilhado pelo Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que devem ser atendidos os princípios da instrumentalidade das formas e do máximo aproveitamento dos atos processuais. 2.8. Jurisprudência do STJ: "[...] Segundo o entendimento desta Corte, devem reger o processo os princípios da instrumentalidade das formas e do máximo aproveitamento dos atos processuais. [...]" (AgRg no REsp 1119836/PR, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, DJe 13/08/2012). (...)" ( AgRg no AREsp 682.744/MG, DJe de 1º/12/2015). 4. Apelo provido?. ( 07018404820188070019, 2ª Turma Cível, DJE: 18/2/2021).
8. Nesse sentido, a penhora do imóvel deve ser mantida, devendo, no entanto, o exequente/agravante, apresentar certidão atualizada do registro de imóveis do bem penhorado para o devido prosseguimento do feito. 9. Recurso provido.
E para finalizar, vejam como esse debate é produtivo e as próprias redes sociais nos ajudam a perceber que a resposta nem sempre é fácil, muita gente acerta, mas uma boa parcela também erra. E mais: mesmo com tudo esmiuçado como eu fiz (claro, quando depurei a resposta mentalmente e transcrevi para um post bem objetivo acabei facilitando de alguma forma para os demais – não me critiquem por isso, é apenas uma reflexão sobre como funciona nosso processo mental). E sim, óbvio, há incontáveis participantes da enquete que já saberiam a resposta e não teriam dificuldade em afirmá-la.
Vejam o resultado da enquete em que tivemos muitos participantes:

Então vamos à resposta: Usucapião – Citação Nula do Proprietário: E agora?
Tribunal de Justiça de São Paulo TJ-SP - Apelação Cível: 1106618-11.2021.8.26.0100 São Paulo (Usucapião – Citação Nula do Proprietário)
APELAÇÃO – QUERELA NULLITATIS INSANABILIS – USUCAPIÃO – CITAÇÃO POR EDITAL DE CONFRONTANTE FALECIDO – SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA – INCONFORMISMO – ACOLHIMENTO – Propositura da ação declaratória de nulidade (querela nullitatis) para o reconhecimento de vício na citação de ação de usucapião anteriormente ajuizada – Citação realizada através de edital em nome de confrontante já falecido – Citação que deveria ser pessoal na pessoa dos herdeiros – Prejuízo do espólio demonstrado – Vício insanável gerador de nulidade absoluta – Inteligência do 246, § 3º, do CPC e Súmula 391 do STF – Sentença de usucapião desconstituída, anulando-se o processo desde a citação – Sentença reformada – DERAM PROVIMENTO AO RECURSO.
TJ-RS - Apelação Cível: AC 70082698416 RS Jurisprudência Acórdão publicado em 03/12/2019 (Usucapião – Citação Nula do Proprietário)
Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE USUCAPIÃO. INDEFERIMENTO DA INICIAL. EXTINÇÃO DO FEITO. JUNTADA DE CERTIDÃO DE AUSÊNCIA DE REGISTRO EM SEDE RECURSAL. PRINCÍPIO DA INSTRUMENTALIDADE DAS FORMAS, CELERIDADE E ECONOMIA PROCESSUAL. DESCONSTITUIÇÃO DA SENTENÇA.
Na hipótese, a autora atendeu intempestivamente o comando judicial de juntada de certidão de ausência de registro do imóvel usucapiendo. Houve a juntada da documentação com a apelação. Não havendo se perfectibilizado a relação processual com a citação da parte ré, em observância ao princípio da economia processual, mostra-se razoável o retorno dos autos à vara de origem para que o feito retorne seu curso normal. Necessário o aproveitamento dos atos processuais já praticados, por força dos domínios da economia processual e da duração razoável do processo, evitando, sobretudo, o ajuizamento de nova ação. APELAÇÃO PROVIDA.
Tribunal de Justiça de Minas Gerais TJ-MG -Apelação Cível: 5000959-42.220.8.13.00020
DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE USUCAPIÃO
ORDINÁRIA. AUSÊNCIA DE CITAÇÃO DO PROPRIETÁRIO REGISTRAL. LITISCON‐
SORTE PASSIVO NECESSÁRIO. NULIDADE PROCESSUAL ABSOLUTA. SENTENÇA
ANULADA. RETORNO DOS AUTOS À ORIGEM PARA REGULARIZAÇÃO DO POLO
PASSIVO. RECURSO PROVIDO.
(Usucapião – Citação Nula do Proprietário)
Conclusão:
A conclusão que eu chego disso tudo é muito menos jurídica do que imaginamos: devemos lembrar de nos questionar. Devemos entender nosso perfil neuro cognitivo (porque cada um deve ter um específico, sei lá) e como chegamos a um raciocínio. E muitas das vezes, a dificuldade de encontrar uma resposta está mais na nossa capacidade de percepção e análise limitadas pela natureza humana do que pelo conhecimento por si só.
E sim, a nulidade da citação do proprietário na usucapião parece realmente fazer com que os autos retornem à origem...
Forte abraço e bons estudos!
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