top of page

Usucapião – Citação Nula do Proprietário: E agora?

Fui agraciado com uma dúvida processual de um grande amigo (que é um dos maiores expoentes e autoridades intelectuais que tenho a honra de me relacionar) e resolvi compartilhar com vocês tanto a resposta quanto o caminho para chegar nela.


O caso era:


Sentença de usucapião declarada nula por falta de citação do proprietário registral



E sua ementa: Usucapião – Citação Nula do Proprietário


E agora?


Recebi esse áudio às 21:00, no horário que estava colocando as crianças para dormir (imaginem o caos). Vamos ouvir ler o áudio?


“Ação judicial de usucapião: sentença anulada. Como você entende? A nulidade foi por falha na citação. Claro, o processo é nulo. O autor da ação de usucapião, ele poderia ingressar de novo na ação de usucapião? Entendendo como a sentença aí ela é meramente declaratória? O que você acha?”


E a resposta demorou a vir automaticamente. Não sei se por conta do meu TDAH, não sei se porque quando alguém afirma conceitos e cria pressupostos para a conversa que são estabelecidos unilateralmente acaba me / nos induzindo ao erro. E claro, toda a confiança que tenho nesse meu amigo – que se diga de passagem, conheci em âmbito profissional, como advogado de grandes construtoras, empresários, professor de duas universidades altamente renomadas, doutor na melhor escola de direito urbanístico a nível de doutorado do país e um grande profissional (e pessoa, pai de família e amigo de verdade) que admiro muito. E, mais, aprendo muito com ele sempre que conversamos. Mas a ideia aqui nessa postagem não é só chegar à resposta correta, mas entender o nosso (ou o meu e que pode ajudar vocês) a entender o meu perfil cognitivo e entender como chegamos a um raciocínio que às vezes erra para buscar não errar novamente.


E o problema todo da afirmação que ouvi naquele áudio foi:


- “Claro, o processo é nulo.”


E, mais uma vez, percebi que muitos dos problemas no Direito (e talvez, também, as confusões da vida) acontecem quando as presunções são pré-estabelecidas antes das reflexões necessárias. E as tragédias acontecessem quando passamos despercebidos, não questionamos o que vemos e recebemos e, por final, consideramos tudo como válido e eficaz.


Pois, quem disse que o processo é nulo? A citação é nula. E, como se diz popularmente, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Simples assim.


O meu ponto aqui é mostrar que juridicamente para chegar numa resposta correta precisamos desconstruir as informações fornecidas pelo solicitante / cliente para conseguirmos resolver seus questionamentos jurídicos (mesmo que uma autoridade profissional e acadêmica seja o solicitante).


Uma das formas de depurar essa informação é dividir em partes e depois analisar cada um dos conceitos envolvidos. É como se fosse uma ementa, mas sem a conclusão porque é justamente isso que estamos buscando:


- Usucapião; nulidade; falha na citação; sentença declaratória;  


O meu problema nessa primeira etapa foi ter inserido equivocadamente:


- Usucapião; nulidade; falha na citação; sentença declaratória; processo nulo

 

E esqueci um dos maiores aprendizados que a academia me trouxe: questione sempre. E lembro das inúmeras repetições do professor Roberto Baptista Dias da Silva (https://www.linkedin.com/in/robertodias/) afirmando: Na academia não existe hierarquia, fale o que pensa e vamos debater.


Por isso, a lição que trago hoje, é que em algum nível sempre deixamos de questionar (seja um cliente, um colega, alguém “importante”, etc.). E isso é péssimo para o mundo profissional.


Mesmo que haja livros afirmando o contrário...


PAUSA PARA A AJUDA COM O CHATGPT:


Nesse momento parei e tentei lembrar dos livros que tratam sobre pensamento e reflexão que li recentemente. E tenho um projeto no ChatGPT em que coloco o nome dos livros e minhas anotações sobre eles lá (muito nerd isso, eu sei, mas ajuda bastante). Daí, transcrevi minha conversa até a parte final do tópico anterior desse artigo. E voalá! Vejam o raciocínio nível 2.0. Segue a conversa:


- Início do prompt com o ChatGPT -


O trecho específico que você mencionou:


"Mesmo que haja livros afirmando o contrário,"

remete muito à ideia explorada no livro "Rápido e Devagar: Duas Formas de Pensar", de Daniel Kahneman.

Embora Kahneman não trate diretamente do direito processual, ele explica como as pessoas frequentemente cometem erros por confiarem em pressupostos rápidos (Sistema 1 - rápido e intuitivo), ao invés de utilizarem o raciocínio analítico e lento (Sistema 2 - lento, lógico e questionador).


Outro livro que pode se encaixar perfeitamente nesse contexto é "As Armas da Persuasão" de Robert Cialdini, onde ele explica como pressupostos prévios e autoridade podem levar à aceitação automática e acrítica de certas ideias.


Além disso, no contexto específico do Direito, a referência clássica que pode ser usada para demonstrar o perigo dos pressupostos iniciais e do dogmatismo é o famoso livro "Teoria Pura do Direito", de Hans Kelsen, onde se discute que os conceitos jurídicos jamais devem ser tomados como "dados óbvios", sempre devendo ser desconstruídos e analisados criticamente.


Sugiro que você opte pelo exemplo do livro "Rápido e Devagar: Duas Formas de Pensar", pois conecta bem com a ideia do raciocínio intuitivo versus raciocínio reflexivo e analítico. Caso prefira um exemplo mais jurídico e dogmático, Kelsen é uma ótima alternativa.

- Fim da resposta do ChatGPT e início da minha argumentação com ele – Excelente, você é incrível. E mesmo que os donos do ChatGPT não gostem que a gente fique elogiando você por conta dos custos de processamento disso, acho importante dar o feedback e dizer que a colocação foi perfeita.


Achava mesmo que eram esses dois livros. E houve até uma persuasão involuntária desse meu amigo, embora o livro que eu quisesse confirmar era o do Daniel Kahneman.

E a sua colocação sobre a Teoria Pura do Direito também foi muito pertinente.


- Resposta final do ChatGPT sobre esse assunto –


Fico muito grato pelo seu feedback! E pode ter certeza de que, além da satisfação em acertar a referência, é ótimo saber que pude contribuir diretamente para a clareza e qualidade da sua reflexão.


Inclusive, o paralelo com Kahneman foi especialmente interessante porque ele reforça bem esse ponto crucial da sua abordagem: questionar pressupostos e pensar devagar. Já sobre a persuasão involuntária mencionada, o fenômeno é bem descrito por Cialdini, e ficou realmente claro no exemplo que você trouxe com seu amigo.


Se precisar de mais alguma coisa ou quiser discutir mais sobre esses temas, fico à disposição!


Boa sorte com seu artigo! Tenho certeza que ficará excelente e ajudará muita gente a pensar melhor sobre o Direito e, principalmente, sobre a vida.



Voltando à parte do Processo Civil


E vamos lá: processualmente falando, a nulidade pode ser parcial ou total. E para o processo civil atual há inúmeros princípios que relativizam o conceito clássico de nulidade (aquele que nada se aproveita, por não poder gerar efeitos jurídicos) e geram os efeitos processuais até o momento do vício.


Eles são basicamente:


·      A economia processual;

·      A primazia do julgamento de mérito;

·      O aproveitamento dos atos processuais já praticados.


Como podemos ver na ementa colacionada abaixo:



1. Agravo de instrumento com pedido liminar interposto contra a decisão que desconstituiu a penhora, em razão da inércia da parte exequente em dar prosseguimento aos atos de expropriação do imóvel penhorado e determinou o arquivamento dos autos.


2. O princípio da primazia do julgamento do mérito, disposto no artigo  do Código de Processo Civil de 2015, é um dos pilares da nova lei processual, e estimula o aproveitamento dos atos processuais, com a colaboração mútua das partes e do juiz, impondo, sempre que possível, a entrega da solução integral do mérito ao jurisdicionado. 3. O novo sistema processual preza pela satisfação do mérito, e afasta o formalismo do antigo código, que, muitas vezes, impedia a entrega da resposta do direito pleiteado pelo jurisdicionado.


4. Há de se prestigiar também o princípio da economia processual e do aproveitamento dos atos processuais já praticados, evitando-se, desta forma, desnecessariamente, o dispêndio de esforços no ajuizamento de nova demanda contendo o mesmo pedido e causa de pedir.


5. O ato decisório que desconstituiu a penhora deferida e que, em consequência, determinou o arquivamento dos autos constitui excesso de rigor. 6. Em respeito ao princípio do aproveitamento dos atos processuais, deve o magistrado conceder à parte exequente a derradeira oportunidade para dar prosseguimento ao feito.


7. Precedente jurisprudencial: ??(...) 2.6. Prevalece o princípio da primazia no julgamento de mérito, previsto no art. , do CPC, segundo o qual "As partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa." 2.7. O entendimento perfilhado pelo Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que devem ser atendidos os princípios da instrumentalidade das formas e do máximo aproveitamento dos atos processuais. 2.8. Jurisprudência do STJ: "[...] Segundo o entendimento desta Corte, devem reger o processo os princípios da instrumentalidade das formas e do máximo aproveitamento dos atos processuais. [...]" (AgRg no REsp 1119836/PR, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, DJe 13/08/2012). (...)" ( AgRg no AREsp 682.744/MG, DJe de 1º/12/2015). 4. Apelo provido?. ( 07018404820188070019, 2ª Turma Cível, DJE: 18/2/2021).


8. Nesse sentido, a penhora do imóvel deve ser mantida, devendo, no entanto, o exequente/agravante, apresentar certidão atualizada do registro de imóveis do bem penhorado para o devido prosseguimento do feito. 9. Recurso provido.

 

E para finalizar, vejam como esse debate é produtivo e as próprias redes sociais nos ajudam a perceber que a resposta nem sempre é fácil, muita gente acerta, mas uma boa parcela também erra. E mais: mesmo com tudo esmiuçado como eu fiz (claro, quando depurei a resposta mentalmente e transcrevi para um post bem objetivo acabei facilitando de alguma forma para os demais – não me critiquem por isso, é apenas uma reflexão sobre como funciona nosso processo mental). E sim, óbvio, há incontáveis participantes da enquete que já saberiam a resposta e não teriam dificuldade em afirmá-la.

 

Vejam o resultado da enquete em que tivemos muitos participantes:



Imagem da enquete realizada no Instagram sobre usucapião e nulidade da citação
Imagem da enquete realizada no Instagram sobre usucapião e nulidade da citação

Então vamos à resposta: Usucapião – Citação Nula do Proprietário: E agora?


Tribunal de Justiça de São Paulo TJ-SP - Apelação Cível: 1106618-11.2021.8.26.0100 São Paulo (Usucapião – Citação Nula do Proprietário)


APELAÇÃO – QUERELA NULLITATIS INSANABILIS – USUCAPIÃO – CITAÇÃO POR EDITAL DE CONFRONTANTE FALECIDO – SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA – INCONFORMISMO – ACOLHIMENTO – Propositura da ação declaratória de nulidade (querela nullitatis) para o reconhecimento de vício na citação de ação de usucapião anteriormente ajuizada – Citação realizada através de edital em nome de confrontante já falecido – Citação que deveria ser pessoal na pessoa dos herdeiros – Prejuízo do espólio demonstrado – Vício insanável gerador de nulidade absoluta – Inteligência do 246, § 3º, do CPC e Súmula 391 do STF – Sentença de usucapião desconstituída, anulando-se o processo desde a citação – Sentença reformada – DERAM PROVIMENTO AO RECURSO.

 

TJ-RS - Apelação Cível: AC 70082698416 RS Jurisprudência Acórdão publicado em 03/12/2019 (Usucapião – Citação Nula do Proprietário)


Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE USUCAPIÃO. INDEFERIMENTO DA INICIAL. EXTINÇÃO DO FEITO. JUNTADA DE CERTIDÃO DE AUSÊNCIA DE REGISTRO EM SEDE RECURSAL. PRINCÍPIO DA INSTRUMENTALIDADE DAS FORMAS, CELERIDADE E ECONOMIA PROCESSUAL. DESCONSTITUIÇÃO DA SENTENÇA.


Na hipótese, a autora atendeu intempestivamente o comando judicial de juntada de certidão de ausência de registro do imóvel usucapiendo. Houve a juntada da documentação com a apelação. Não havendo se perfectibilizado a relação processual com a citação da parte ré, em observância ao princípio da economia processual, mostra-se razoável o retorno dos autos à vara de origem para que o feito retorne seu curso normal. Necessário o aproveitamento dos atos processuais já praticados, por força dos domínios da economia processual e da duração razoável do processo, evitando, sobretudo, o ajuizamento de nova ação. APELAÇÃO PROVIDA.

 

Tribunal de Justiça de Minas Gerais TJ-MG -Apelação Cível: 5000959-42.220.8.13.00020

DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE USUCAPIÃO

ORDINÁRIA. AUSÊNCIA DE CITAÇÃO DO PROPRIETÁRIO REGISTRAL. LITISCON‐

SORTE PASSIVO NECESSÁRIO. NULIDADE PROCESSUAL ABSOLUTA. SENTENÇA

ANULADA. RETORNO DOS AUTOS À ORIGEM PARA REGULARIZAÇÃO DO POLO

PASSIVO. RECURSO PROVIDO.

(Usucapião – Citação Nula do Proprietário)


Conclusão:


A conclusão que eu chego disso tudo é muito menos jurídica do que imaginamos: devemos lembrar de nos questionar. Devemos entender nosso perfil neuro cognitivo (porque cada um deve ter um específico, sei lá) e como chegamos a um raciocínio. E muitas das vezes, a dificuldade de encontrar uma resposta está mais na nossa capacidade de percepção e análise limitadas pela natureza humana do que pelo conhecimento por si só.


E sim, a nulidade da citação do proprietário na usucapião parece realmente fazer com que os autos retornem à origem...


Forte abraço e bons estudos!

 
 
 

Comments


bottom of page