Não se pode desprezar a característica de procedimento administrativo de tudo que é exarado dentro das serventias extrajudiciais (se a natureza é administrativa ou de jurisdição voluntária, deixamos a discussão para outra hora).
Isso faz com que haja limites na atuação do registrador em situações que possam envolver direitos de terceiros e um prejuízo potencial a quem não participa do procedimento.
A seguir fica colacionada uma decisão de 2021 sobre o tema (extraída do portal Kolematta - que sempre indicamos em nossos treinamentos):
MATRÍCULA - RETIFICAÇÃO. QUALIFICAÇÃO PESSOAL - COPROPRIETÁRIO TABULAR ESTADO CIVIL. AÇÃO DE USUCAPIÃO - ERRO MATERIAL. TÍTULO CAUSAL. VIA JURISDICIONAL.
1VRPSP - PEDIDO DE PROVIDÊNCIAS: 1100354-75.2021.8.26.0100
LOCALIDADE: São Paulo DATA DE JULGAMENTO: 15/10/2021 DATA DJ: 19/10/2021
UNIDADE: 9
RELATOR: Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad
JURISPRUDÊNCIA: Indefinido
LEI: LRP - Lei de Registros Públicos - 6.015/1973 ART: 213 INC: I LET: g
LEI: LRP - Lei de Registros Públicos - 6.015/1973 ART: 214
ESPECIALIDADES: Registro de Imóveis
Matrícula - retificação. Qualificação pessoal - coproprietário tabular - estado civil. Ação de usucapião - erro material. Título causal. Via jurisdicional.
Íntegra
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO - COMARCA DE SÃO PAULO - FORO CENTRAL CÍVEL - 1ª VARA DE REGISTROS PÚBLICOS
Processo Digital nº: 1100354-75.2021.8.26.0100 Classe - Assunto Pedido de Providências - Registro de Imóveis Requerente: Maria José Gonçalves Raymundo Requerido: 9º Oficial de Registro de Imóveis da Capital Vistos.
Trata-se de pedido de providências formulado por Maria José Gonçalves Raymundo em face do Oficial do 9º Registro de Imóveis da Capital diante da negativa em retificar sua qualificação pessoal na matrícula n. 312.575 daquela serventia.
A parte interessada aduz que é coproprietária tabular do imóvel, cuja matrícula foi aberta em razão de sentença proferida na ação de usucapião de autos n. 0002693-65.2011.8.26.0100, em cuja inicial qualificou-se erroneamente como casada com Valdomiro Raymundo, induzindo aquele juízo a erro; que, em verdade, quando ajuizou a ação, juntamente com seus irmãos, já era viúva, com se demonstra pela certidão de óbito de seu ex-cônjuge; que houve negativa ao pedido de retificação de seu estado civil pelo juízo daquela ação em razão do esgotamento da tutela jurisdicional. Diante disso, requer a notificação de todos os confrontantes e demais titulares do bem e, por fim, a retificação do erro material para que conste naquela sentença que ela era viúva, com a consequente averbação na matrícula do imóvel.
Vieram documentos às fls. 04/20.
A decisão de fl. 21 delimitou a competência desta Corregedoria Permanente (análise quanto à regularidade do ato registral e da atuação do Oficial), bem como exigiu comprovação de prenotação válida junto à serventia extrajudicial, o que foi atendido.
O Oficial manifestou-se à fl. 26, sustentando que o registro reflete adequadamente o título de origem, no qual a parte requerente foi qualificada como casada com Valdomiro Raymundo sob o regime da comunhão universal de bens, embora a certidão de óbito vinda aos autos demonstre que ela ficou viúva quase quatro anos antes da distribuição do processo de usucapião.
O Ministério Público opinou pela improcedência, tendo em vista que o pedido em comento não reflete mera questão registrária (fls. 39/40).
É o relatório.
Fundamento e decido.
Por primeiro, anoto que a análise deste juízo administrativo se dá em ambiente de competência limitada e de contraditório restrito, sendo certo que a oitiva de atingidos reserva-se a casos de nulidades de pleno direito conforme o disposto no art. 214 da Lei de Registros Públicos, o que não é o caso dos autos, já que o pedido trata especificamente da qualificação da parte requerente no registro n. 1 da matrícula n. 312.575, lavrado em total fidelidade ao título.
Não cabe, portanto, a intimação dos confrontantes do imóvel usucapido nem dos demais titulares do domínio como pretende a parte requerente.
No mérito, o pedido não procede. Vejamos os motivos.
De início, vale reiterar que o Registrador procedeu à abertura da matrícula n. 312.575 em conformidade com o título judicial que a determinou (fls. 08/09 e 16/18).
A despeito do registro fiel ao título, a parte requerente afirma que, na ação de usucapião, distribuída em 2011, ela foi qualificada, equivocadamente, no estado civil de casada em regime de comunhão universal de bens com Valdomiro Raymundo (fls. 10/20), erro que, de fato, se confirma pela certidão de óbito vinda à fl. 07, demonstrando que ela já era viúva desde o ano de 2007.
Não se desconhece que a Lei n. 6.015, de 31 de dezembro de 1973, em seu art. 213, inciso I, "g", permite a retificação do registro de imóveis sempre que se fizer necessária inserção ou modificação dos dados de qualificação pessoal das partes quando comprovada por documentos oficiais ou mediante despacho judicial, na hipótese em que provas precisarem ser produzidas.
Todavia, no caso concreto, embora a parte requerente tenha demonstrado que houve erro material em sua qualificação pessoal na ação de usucapião, a retificação buscada não pode ser autorizada nesta via administrativa.
Isso porque não se trata de mero erro material que afetaria apenas a especialidade subjetiva e, portanto, sem repercussão nos efeitos decorrentes da abertura da matrícula.
Ao contrário, a alteração do estado civil da parte requerente, de casada para viúva, poderia afetar diretamente o direito de terceiros, no caso, os sucessores de Valdomiro Raymundo, já que, diante dos poucos elementos daquela ação vindos a este feito (inicial, procuração e sentença – fls. 10/20), não se pode afastar a possibilidade de ter havido transmissão dos direitos do falecido, inclusive de posse.
Note-se que ele deixou uma filha (Maria de Fátima – fl. 07), a qual, a princípio, poderia ter integrado aquela relação jurídica processual na condição de herdeira e sucessora do "de cujus". Note-se, ainda, que o lapso temporal considerado pelo juízo jurisdicional foi de 20 (vinte) anos, sendo certo que a requerente ficou viúva apenas quatro anos antes do ajuizamento daquela ação (fls. 07 e 10/20). Ou seja, há evidências de que Valdomiro tenha exercido a posse do imóvel juntamente com a requerente até a dissolução da união, que se deu com o falecimento dele.
Como é cediço, não compete a este juízo administrativo modificar direitos constituídos por decisões judiciais, sendo certo que a alteração do estado civil da parte requerente, com eventual manifestação da herdeira de seu falecido cônjuge ou de qualquer outro eventual sucessor, também deve ser tratada em via contenciosa que assegure o contraditório, seja na mesma ação de usucapião ou em outro processo cível.
A jurisprudência da E. Corregedoria Geral da Justiça é no sentido de que a retificação de dados pessoais na esfera administrativa com fulcro na alínea "g", inciso I, do art. 213 da Lei nº 6.015/1973, reserva-se a casos de erro material, sem relação a nenhum ato de manifestação de vontade das partes ou de terceiros, como se verifica de trecho extraído do Parecer CGJ 45/2021-E - Processo 1035106-02.2020.8.26.0100, DJ 16/02/2021, com nossos destaques:
"(...) Ocorre que os documentos trazidos aos autos comprovam que a recorrente, donatária do imóvel, à época da doação e do registro era casada com José Roberto Sobrinho sob o regime da separação total de bens, consoante se depreende da certidão de casamento a fl. 10/11 e da escritura de pacto antenupcial a fl. 12/14. Não há, pois, nenhuma controvérsia acerca do erro existente na escritura pública de doação e, consequentemente, no registro imobiliário. E esse erro, cumpre anotar, se refere estritamente à qualificação da donatária, não estando relacionado a nenhum ato de manifestação de vontade das partes. A pretensão tem amparo na alínea "g", inciso I, do art. 213 da Lei nº 6.015/1973, que prevê a retificação a requerimento do interessado no caso de inserção ou modificação dos dados de qualificação pessoal das partes, comprovadas por documentos oficiais ou mediante despacho judicial quando houver necessidade de produção de outras provas. O item 135.1, alínea "g", do Capítulo XX das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça praticamente reproduz a redação desse dispositivo da Lei de Registros Públicos. Cabível, pois, a correção pretendida, independentemente da retificação do título que deu ensejo ao registro".
Vale anotar, por fim, que eventual negativa do juízo da usucapião ao pedido de retificação, o que veio noticiado pela parte requerente sem comprovação (apenas cópia do requerimento foi produzida - fls. 19/20), não interfere na conclusão ora apresentada.
Diante do exposto, JULGO IMPROCEDENTE o pedido.
Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.
Oportunamente, remetam-se os autos ao arquivo.
P.R.I.C.
São Paulo, 15 de outubro de 2021.
Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad Juiz de Direito
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