A decisão trazida para o estudo de hoje trata da doação com cláusulas restritivas sem fundamentação em justa causa e escritura sem registro.
Esse tema permeou minha atuação em Minas Gerais e acabou me acompanhando junto com a atividade no Novo Sétimo Tabelionato de Notas de Campina Grande / PB.
Isso porque lavrei uma escritura de doação (adiantamento de legítima) para uma família de amigos que tinham o seu ascendente acometido de certas enfermidades e poderia vir a óbito a qualquer momento (embora estivesse plenamente capaz na época da lavratura). Entretanto, a família demorou a levar o título ao registro e após o falecimento do ascendente fez o ingresso no protocolo do registro de imóveis.
Na ocasião, o registrador devolveu o título informando que seria impossível seu registro sem que fosse rerratificado para excluir as cláusulas ou impôr a justa causa (o que só seria possível mediante psicografia).
Não me lembro exatamente o motivo pelo qual não fora imposta a cláusula na época, mas lembro que fui convencido a lavrar dessa forma (até mesmo porque um ato anulável / sanável é possível de ser lavrado sem qualquer problema). Mas pelos lampejos de memória que eu tenho, na época provavelmente vi que o tema era passível de discussão e aberturas e as partes queriam aceitar o risco, então fomos em frente com a vontade delas, após evidentemente estarem todos de acordo com a peculiaridade da situação em que se prestigiava a vontade acima da segurança jurídica.
Mas a celeuma jurídica levou algum tempo até ser finalizada.
A nota devolutiva do registro de imóveis contemplou:
1º OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS E ANEXOS DE JUNDIAÍ - SP
Rua Hilda Del Nero Bisquolo, nº 102, Jardim Flórida- Jundiaí - SP
Fone/Fax: (11) 2923 7373
CNPJ n.º 51.278.547/0001-94
Protocolo n.º XXXXXX em: 05/12/2023 12:46:16 Senha/Código de Verificação: XXXXx
Apresentante: XXXXX
Razão Social / Contratante (s): XXXXX
Natureza do Documento: Escritura Pública
Data de Vencimento da Prenotação: 04/01/2024
Exigência formulada pelo (a) Escrevente: <assinatura>
O presente título foi devolvido pelo(s) seguinte(s) motivo(s):
1. Trata-se de escritura pública do doação lavrada em 05 de abril de 2021, pelo Tabelionato de Notas de Tocos do Moji, Estado de Minas Gerais, Livro nº XXXXX, folhas XXXXX, pretendendo o imóvel objeto da Matrícula nº 61.273, desta Serventia.
Ante a análise, verifica-se que o imóvel objeto deste negócio jurídico, foi doado aos filhos do proprietário, com a imposição da cláusula de incomunicabilidade, sem contudo se especificar a razão da imposição das referidas cláusulas.
Ainda nesse sentido, foi apresentado requerimento firmado em 17 de novembro de 2023, devidamente assinado pelos donatários, indicando a impossibilidade de retificação da escritura em virtude do falecimento do doador XXXXX, e manifestando a intenção de registrar a doação sem a averbação da referida cláusula.
Ocorre que, consta da supracitada escritura, em seu item 8.2 que: os bens da presente doação ficam gravados com a cláusula de incomunicabilidade [...], perdurando inclusive, após a morte do doador, não havendo o que se falar em seu cancelamento nos termos do Artigo 250, incisos II e III da Lei 6.015/73, conforme solicitado.
Assim, faz-se necessário que se proceda a retificação da escritura para constar a razão da imposição da cláusula de incomunicabilidade, tudo em atendimento ao disposto nos Arts. 544 e 1.848 ambos da Lei Federal nº 10.406/02 (Código Civil Brasileiro) e em conformidade com o Acórdão prolatado pelo Conselho Superior da Magistratura na Apelação Cível nº 776-6/2.
2. Por fim, para procedermos aos atos pretendidos necessário um complemento ao depósito prévio no valor de R$ 2.353,89, relativo aos emolumentos, conforme adiante especificado, a ser realizado pela parte interessada, sendo que o respectivo cálculo foi realizado em observância a Lei Estadual n.° 11.331/02, regulamentada pelo Decreto Estadual n.° 47.589/03:
Matrícula nº 61.273
R$ 35,94 à averbação da qualificação;
R$ 2.285,22 ao registro da doação;
R$ 35,94 à averbação da cláusula de incomunicabilidade;
R$ 68,65 à emissão de uma (01) certidão atualizada.
Totalizando assim R$ 2.425,75.
Foi pago até o momento o valor de R$ 71,86.
Cumpre informar que, novas exigências poderão ser formuladas, de acordo com os documentos a serem apresentados, bem como, o cálculo das custas e emolumentos poderá sofrer alterações, em observância ao Item 22 e seguintes, do Capítulo XX, das NSCGJ-SP.
<assinatura>
<cargo>
Jundiaí, <dia> de <mes> de <ano>.
Observação: Informamos que para o cumprimento da(s) exigência(s) citada(s) acima é necessário proceder com a reentrada do título.
Nossas saídas eram:
a) ingressar com uma ação judicial solicitando a alteração da escritura;
b) realizar o inventário e desprezar a escritura;
c) usar o cérebro e encontrar uma saída juridicamente viável na seara registral para sanar essa particularidade do ato;
d) me fingir de morto.
Como não poderia ser diferente nessa vida, optamos pela única opção aceitável que era a alternativa "c".
É sabido que a doação de bens imóveis, acompanhada de cláusulas restritivas como a impenhorabilidade e a incomunicabilidade deve observar o artigo 1.848 do Código Civil que dispõe:
Art. 1.848. Salvo se houver justa causa, declarada no testamento, não pode o testador estabelecer cláusula de inalienabilidade, impenhorabilidade, e de incomunicabilidade, sobre os bens da legítima.
Esse assunto, muito relevante para planejamentos patrimoniais, suscita debates acerca da sua validade, aplicabilidade e as consequências jurídicas que podem advir de sua má interpretação ou aplicação inadequada.
O caso colacionado ao final e que será feita a análise, é um outro julgado pelo Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, ilustra a complexidade do tema. Nele, discute-se a negativa de registro de uma escritura pública de doação por imposição, considerada imotivada, de cláusulas restritivas. A decisão aponta para a nulidade dessas cláusulas, sob o argumento de que não se justificam na ausência de uma motivação válida, conforme estabelecem os artigos 1.848, “caput”, e 2.042 do Código Civil.
Todavia, o que pode ser feito caso a doação seja lavrada sem as cláusulas? Como se registra uma escritura que impôs tais restrições, mas foi denegado seu registro?
Tudo se responde pelos princípios do registro de imóveis. Nesse caso, o princípio da cindibilidade.
A análise da cindibilidade do título, ou seja, a possibilidade de se aproveitar partes válidas do ato jurídico, mesmo diante da nulidade de outras, emerge como a ferramenta para a resolução de impasses que possam surgir no registro de tais atos.
A decisão também reflete sobre a necessidade de justa causa para a imposição de cláusulas restritivas em doações, alinhando-se com a doutrina e a jurisprudência que defendem a flexibilidade e a adaptabilidade do Direito Civil às realidades patrimoniais e familiares contemporâneas.
O entendimento adotado pelo tribunal, ao permitir o registro da doação desconsiderando as cláusulas restritivas, reforça a ideia de que a cindibilidade é uma saída para sanar vícios que possam comprometer a viabilidade de registro do título.
Este "causo" notarial serve como um lembrete da complexidade envolvida na gestão de patrimônios e na realização de doações.
Ele escancara a necessidade de saber o que se faz para que as transações imobiliárias sejam realizadas de maneira segura e eficaz, respeitando e priorizando a vontade das partes sobre as aberturas da legislação vigente.
Vamos à decisão (retirada da kollemata):
Doação. Cláusulas restritivas - incomunicabilidade - impenhorabilidade. Justa causa. Nulidade. Cindibilidade.CSMSP - Apelação Cível: 0008818-68.2012.8.26.0438Localidade:
Penápolis Data de Julgamento: 06/11/2013 Data DJ: 06/11/2013
Relator: José Renato NaliniJurisprudência: IndefinidoLei: CC2002 - Código Civil de 2002 - 10.406/2002 ART: 549, 1.848, 2.042
Registro de Imóveis – Dúvida julgada procedente - Negativa de registro de escritura pública de doação – Imposição imotivada de cláusulas restritivas - Inteligência dos artigos 1.848, “caput”, e 2042 do Código Civil – Nulidade - Cindibilidade do título - Desconsideração das limitações - Recurso provido.
íntegra
PODER JUDICIÁRIOTRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA Apelação Cível no 0008818-68.2012.8.26.0438 ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação no 0008818-68.2012.8.26.0438, da Comarca de Penápolis, em que é apelante DIEGO GARMES, é apelado OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS, TÍTULOS E DOCUMENTOS E CIVIL DE PESSOA JURÍDICA DA COMARCA DE PENÁPOLIS.
ACORDAM, em Conselho Superior de Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: "DERAM PROVIMENTO AO RECURSO, V.U.", de conformidade com o voto do(a) Relator(a), que integra este acórdão.
O julgamento teve a participação dos Desembargadores IVAN SARTORI (Presidente), GONZAGA FRANCESCHINI, WALTER DE ALMEIDA GUILHERME, SILVEIRA PAULILO, SAMUEL JÚNIOR E TRISTÃO RIBEIRO.
São Paulo, 6 de novembro de 2013.RENATO NALINIRELATORApelação cível no 0008818-68.2012.8.26.0438 Apelante: Diego Garmes
Apelado: Oficial de Registro de Imóveis e Anexos de Penápolis
VOTO No 21.343
Registro de Imóveis – Dúvida julgada procedente - Negativa de registro de escritura pública de doação – Imposição imotivada de cláusulas restritivas - Inteligência dos artigos 1.848, “caput”, e
2042 do Código Civil – Nulidade - Cindibilidade do título - Desconsideração das limitações - Recurso provido.
O Oficial do Registro de Imóveis, Títulos e Documentos, Civil de Pessoa Jurídica e Tabelionato de Protesto de Letras e Títulos da Comarca de Penápolis obstou o registro de Escritura de Doação, incidente sobre os imóveis retratados nas matrículas no 6634 e 35471, entendimento que foi prestigiado pelo MM Juiz Corregedor Permanente no julgamento da dúvida suscitada (fls. 40/41).
Inconformado, apelou o interessado Diego Garmes (fls. 43/48), sustentando que o objeto da doação não extrapolou a parte disponível da donatária, sendo inaplicável o dispositivo legal que obriga a motivação para a imposição de cláusulas restritivas.
A Douta Procuradoria Geral de Justiça opinou pelo não provimento do recurso (fls. 97/98). É o relatório.
O Registrador alega que o ato de disposição feito pela donatária, com imposição de cláusulas restritivas de incomunicabilidade e impenhorabilidade é nulo, pela inobservância dos artigos 1848 e 549, ambos do Código Civil.
Da leitura dos dispositivos invocados resta claro que a exigência só tem cabimento na hipótese em que os bens doados integrem a legítima, ou seja, parte da herança reservada aos herdeiros necessários do doador.
O apelante sustenta que os imóveis doados não ultrapassavam a metade do acervo dos bens da doadora. Não havia, entretanto, esta comprovação no momento em que o título foi levado a registro, o que justifica o óbice apresentado pelo Oficial.
Apenas por ocasião da interposição deste recurso foram juntados os documentos comprobatórios de que a parte possuía patrimônio suficiente para dispor livremente dos imóveis objeto do contrato de doação.
Todavia, entendo que a inobservância apontada macula apenas as disposições acessórias do contrato, e não o ato de disposição de vontade como um todo.
Ademar Fioranelli, em obra específica sobre o tema, comenta que:
“Respeitadas as opiniões divergentes, o certo é que o novo código autoriza expressamente a imposição de cláusulas restritivas à legítima, por testamento ou doação (como antecipação de legítima), exigindo que no título constem as razões do testador para impô-las (a justa causa). Não mais prevalece a vontade incondicionada do testador, mas a necessidade legal de declarar o justo motivo para tornar válida e efetiva a imposição.”[i]
Conforme decidido em voto da lavra do Des. Maurício Vidigal (Apelação Cível no 0024268-85.2010.8.26.0320):
“Mas a falta de justa causa compromete apenas a validade da cláusula restritiva, não da doação. Há muito este Egrégio Conselho Superior da Magistratura vem aplicando a regra da cindibilidade do título, pelo qual autoriza-se o registro daquilo que possa ingressar no fólio real, e nega-se o daquilo que não possa, permitindo se extrair do título apenas aquilo que comporta o registro. A doação é hígida e foi livremente celebrado entre os contratantes. Apenas a cláusula de impenhorabilidade padece de vício, por afronta ao art. 1848, “caput”, do Código Civil. Admissível, portanto, o registro da escritura de doação, desconsiderando-se a cláusula de impenhorabilidade nele inserida.
Em caso similar, este Egrégio Conselho Superior decidiu:
“Há, contudo, um único vício no instrumento de compra e venda do imóvel adquirido pela apelante que impede o seu ingresso no registro, na forma como elaborado. Diz respeito à cláusula de incomunicabilidade inserida na escritura. Com efeito, quando a interveniente Maria Helena doou a importância de R$ 120.000,00, representada pelo apartamento do edifício Príncipe de Liverpool, no. 63, transmitindo-o a seguir aos vendedores Edmundo Antonio e sua mulher, fez constar que a doação se fazia com exclusividade, em caráter incomunicável, como adiantamento de sua legítima. A disposição constante do título é nula, porque afronta o disposto no art. 1848 do Código Civil ... Todavia a nulidade ora apontada se restringe apenas à cláusula inserida no título e não importa na invalidade deste, mas somente na sua cindibilidade, a fim de que se torne viável o seu registro a seguir” (Ap. Civ. 440-6/0, de 06 de dezembro de 2005, Rel. Des. José Mário Antonio Cardinale).”
Comungo do entendimento acima esposado, para admitir o ingresso do título no registro imobiliário, com a desconsideração das cláusulas restritivas de impenhorabilidade e incomunicabilidade nele inseridas.
Nesses termos, pelo meu voto, à vista do exposto, dou provimento ao recurso.
José Renato Nalini
Corregedor Geral da Justiça e Relator
[i] “Das cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade”, Editora Saraiva, 2009, pag. 9
Abaixo o arquivo completo para estudo e arquivo.
Bons estudos!
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